Miriam's Song

Tudo o que eu li nesse livro me deixou muito impressionada, é muito além do que eu aprendi na escola, muito além das minhas pesquisas na internet e, às vezes, até mais cruel do que algumas histórias que a Caroline me contou.
E eu não me refiro somente às condições de estudo por causa da Bantu Education (educação para negros), me refiro a tudo: a Miriam vivia em um lugar perto de Johanesburg chamado Alexandra, uma área exclusiva para negros. Em Alexandra as casas não tinham energia elétrica e nem água encanada. Pelo que eu entendi todos moravam em espécies de cortiços, em casas de 2 cômodos que, no caso dela, era dividida por uma família de 9 pessoas. Mas dependendo da família eram mais pessoas nas casas, mas as casas nunca eram muito maiores do que 2 ou 3 cômodos e com uma fossa no quintal que era dividida entre todas as casas do quintal.
A taxa de desemprego em Alexandra na década de 80 chegava a 60% e a violência – inclusive por parte dos policiais – era muito grande. As taxas de evasão da escola não eram medidas – ou pelo menos ela não cita no livro – mas ela comenta a respeito das amigas e das irmãs que abandonaram a escola porque ficaram grávidas ou porque foram tão aterrorizadas pelos professores que não conseguiam voltar pra escola ou porque tinham que procurar um emprego para ajudar a família. Só que os empregos só eram oferecidos na parte “branca” da cidade e para ir até lá os negros precisaram de uma espécie de passaporte emitido pelo governo só que sem emprego você não podia ter esse passaporte e sem o passaporte você não podia ir até a cidade procurar emprego. Isso faz sentido?
Então as pessoas como a mãe da Miriam que não tinha esse documento iam procurar emprego na parte “branca” da cidade, mas não eram contratados porque não tinham o passaporte. Em algumas vezes a mãe da Miriam teve “sorte” e conseguiu trabalhar para estrangeiros que aceitavam empregados sem esse passaporte. Mas isso era um risco tanto para o empregador, quanto para o empregado. Se a polícia solicitasse o documento do negro e ele não estivesse regular, o negro ia para a cadeira e o empregador, branco, tinha que pagar uma multa.
Pelo que ela conta esse documento era bem difícil de conseguir e poucas pessoas tinham.

A escola é outro capítulo muito interessante, pra dizer o mínimo. Até hoje TODAS as escolas aqui são pagas e as crianças vão para a escola de forma impecável: esqueça o uniforme escolar do Brasil onde uma camiseta e, às vezes, uma calça de moletom são suficientes. Aqui a criança tem até sapato e meias certos pra ir pra escola – eu juro que ainda tiro uma foto pra postar aqui – em algumas idades é obrigatório o uso de gravatas até entre as meninas, pense em alguma coisa tipo High School Musical.
Mas quando a Miriam frequentou a escola a coisa era absurdamente pior do que hoje, não apenas porque a família dela não tinha dinheiro nem para comer em determinadas épocas, mas porque as crianças eram realmente humilhadas por qualquer motivo. Quando ela começa o livro ela tem em torno de 10 anos e ela não tinha sapatos para ir pra escola porque os pais não tinham dinheiro pra comprar, então ela ia descalça. E os professores batiam nela porque ela não tinha sapatos. Entre outros motivos, os professores batiam nas crianças se elas não estivessem bem penteadas, com unhas limpas e cortadas e com o uniforme completo e os livros comprados. As crianças também apanhavam dos professores se a mensalidade da escola não fosse paga, se eles não fizessem tarefa, se eles chegassem atrasados na escola, se eles conversassem ou comessem na sala de aula ou se não tirassem boas notas. Também esqueça a palmatória que era usada na década de 50 no Brasil. Os professores usavam pedaços de pau e batiam até no rosto das crianças. Alguns professores extorquiam os alunos pedindo dinheiro par comprar bebida e cigarros em troca de não bater neles. As crianças tinham completo pavor das inspeções de limpeza que eram realizadas frequentemente e quando o professor chamava o nome de alguma criança pra inspeção de limpeza – ver se os cabelos e unhas estavam limpos e bem aparados – a criança já ia para a frente da sala chorando e apanhava em frente de todos os amiguinhos.

De acordo com o Dr. Verwoerd, um dos “pais” do Apartheid e criador da Bantu Education, ele disse em 1953 ao Parlamento Sul Africano sobre a Bantu Education um pouco antes dela ser legalizada:

“Quando eu tiver o controle sobre a educação dos nativos, eu vou fazer de uma maneira que os nativos serão treinados desde a infância e aprenderão que não há igualdade entre eles e os europeus. Não há lugar para eles [negros] na sociedade européia a partir de certos níveis de trabalho... Por que vamos ensinar matemática a uma criança negra se ela não vai precisar disso na prática?... A educação deve treinar e ensinar as pessoas de acordo com as suas oportunidades na vida... Portanto é necessário que a educação dos nativos seja controlada de acordo com os interesses do Estado.” Tradução ‘livre’ de um trecho do livro.

A Mirian conta que o sonho dela era ser enfermeira, mas estudando aqui em South Africa o máximo que ela conseguiria era ser empregada doméstica. A Bantu Education era voltada para formar escravos: as crianças negras não aprendiam nada de história, geografia, sociologia, psicologia e outras matérias que eram oferecidas nas escolas dos brancos. Eles aprendiam economia doméstica, jardinagem, subserviência ao homem branco e a aceitar seu lugar inferior em um país que vivia sobre regras nazistas. Na minha opinião a única diferença entre o Apartheid e o Nazismo é que o governo alemão jogou as pessoas em campos de concentração e matou milhões. O governo sul africano nunca criou campos de concentração, mas ele desocupava áreas antes habitadas por negros ou colored sem nenhum tipo de indenização e mandava essas pessoas para outras regiões e deixava que as próprias pessoas se matassem.
O governo sul africano não permitia a circulação de negros em áreas brancas em determinados horários – mesmo se o negro trabalhasse naquele lugar e tivesse o passaporte – e tinha regras diferentes aplicadas para negros e brancos, por exemplo: se um negro estuprasse uma mulher branca ele iria para a cadeia, mas se um branco estuprasse uma mulher negra ele recebia uma multa.

Outra coisa que nossos livros de história não contam é de como a revolta popular foi violenta e sangrenta. A violência estava em toda a parte: começando pela polícia que dava batidas em Alexandra procurando pessoas “ilegais” até nos namorados que estupravam as namoradas para ter sexo. Nossos livros de história não contam sobre como as iniciativas populares aconteciam e não falam sobre os desaparecidos na época do apartheid – assim como temos no Brasil desaparecidos desde a ditadura militar – algumas pessoas, como o Mandela, eram conscientes dessa diferença e não achavam isso justo por isso elas lutaram, foram presas, torturadas e até morreram em honra dessa luta. As pessoas faziam o que podiam, mas eram repreendidas violentamente pela polícia e, às vezes, até pelos grupos anti-apartheid. A coisa toda era bem simples: os grupos anti-apartheid precisaram de muita gente pra fazer os protestos então eles invadiam escolas e batiam nas casas das pessoas obrigando os adolescentes e jovens a ir para o protesto e quem se recusasse tinha os joelhos quebrados. Uma vez bateram na casa da Miriam e ela inventou que tinha torcido o tornozelo e foi “liberada” de ir ao protesto que seria pacífico durante a noite. Naquela noite a polícia chegou atirando, batendo e prendeu vários amigos dela – todos com idade entre 13 e 15 anos, mas eles relatam que haviam crianças com menos de 10 anos presas junto com eles – as famílias ficaram sem notícias deles e a polícia falava que eles não estavam presos. Depois de 10 dias, quando todos imaginavam que eles estavam mortos, eles foram liberados, estavam todos muito magros, pálidos e eles contaram o quanto foram torturados. Eles eram questionados a respeito dos lideres do Comrade – o grupo anti-apartheid responsável por aquele protesto – mas eles não sabiam dizer quem eram porque eles não eram parte do grupo, estavam lá obrigados só para aumentar o número de pessoas. Mesmo assim a policia não acreditou neles e eles foram torturados com choques elétricos 4 vezes por dia durante por 10 dias.

A vida da Miriam mudou quando o irmão mais velho dela, que através de alguns americanos, conseguiu uma bolsa para cursar a faculdade nos Estados Unidos. Depois de quase 10 anos longe da família ele conseguiu, aos poucos buscar quase todos os irmãos para morar com ele nos Estados Unidos. A Mirian, por ser uma das caçulas, foi uma das últimas a ir para os Estados Unidos. Mesmo assim ele só levou ela depois que ela terminou o que seria equivalente ao ensino médio no Brasil. Mesmo assim, quando ela chegou nos Estados Unidos, aos 23 anos, ela teve que voltar para o ensino médio e foi estudar com adolescentes de 15 e 16 anos. Ela terminou a high school em 1995 com honras de melhor aluna da escola e em seguida ela conseguiu uma vaga para estudar enfermagem.
O livro não conta se ela chegou a terminar o curso de enfermagem que ela tanto sonhava – só diz que ela está cursando – mas pelo pouco que dá para conhecer dela no livro eu tenho certeza que ela terminou. Ela é o tipo de pessoa que tem garra, que luta e que corre atrás dos seus sonhos apesar de das dificuldades ou mesmo quando outras pessoas dizem para ela que é impossível. Ela é um bom exemplo a ser seguido nesse mundo tão cheio de injustiças e de pessoas sem princípios.

Não sei se esse livro foi traduzido para o português, mas eu recomendo mesmo para quem tem um inglês “mais ou menos”, pela história dela vale a pena o esforço de ler um livro em inglês.

Título: Miriam’s Song
Autor: Mark Mathabane (o irmão mais velho dela)

PS: pesquisem outros livros dele como Kaffir Boy, esse é a história da vida dele. Já está na minha “lista de desejos”.

#VaiCarol

Comentários

  1. AFFFF...

    Essa sua "sinopse" me provocou um misto de sentimentos....

    Ao mesmo tempo que afirmo que esse mundo tá condenado porque o ser humano é um lixo capaz de fazer coisas dessas com uma pessoa, comunidades ou países inteiros, como aliás a história já mostrou desde que o mundo é mundo, também senti um fiozinho de esperança porque também ainda existem pessoas como essa menina...

    Mas uma coisa eu sei: livros como esse e o diário de Anne Frank deveriam ser leitura obrigatória nas escolas, pra quem sabe assim, na escola, evitar que se formem novos "Drs. Verwoerd" da vida....

    Vai Carol! :D

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